16/09/2010

Recordações de Infância - Eugénio de Andrade

Recordações de Infância


   Há poucos brinquedos na minha vida, mas, além do arco, do pião e da bilharda, a minha infância está cheia de sol, cheia de água. E do calor quase materno dos animais. Meu avô comprara-me uma  cabra e três ou quatro merinos. E nós já tínhamos um burro e um cão, além das galinhas e do pato. Eu adorava aqueles borreguinhos com olhos de rola, e, depois, a imaginação das crianças é muito vasta: o pequeno engenho feito de juncos por um primo meu facilmente se convertia em azenha. Um rego de água era o mais irreal e navegável dos rios, os bichos feitos de bugalhos e gravetos ganhavam vida por encanto. Chapinhar numa poça de água ou transformar uma cabra em cavalo persa, se isso não é a felicidade, então a felicidade não existe. Os cavalos, sim, foram uma paixão minha, mas só um pouco mais tarde, dos sete para os oito anos, já em Castelo Branco, quando comecei a ver o Tom Mix no cinema Vaz Preto. E foi ainda naquela cidade que tive isso a que talvez se possa chamar o primeiro brinquedo - uma trotineta.
   Ninguém se lembra já de me ver passar pelas ruas belo como um anjo de proa. Mas com ela fui assim uma espécie de Fernão de Magalhães dando a volta ao mundo: descia do Castelo e só parava no Jardim do Paço, depois regressava a casa a horas do pão com compota de ginga e o sorriso da mãe - tão merecidos.

Eugénio de Andrade, Um Olhar Português, Círculo de Leitores

I

1. Com um traço, delimita no texto os momentos correspondentes a:

a) recordações de infância vivida no campo;
b) recordações da infância vivida na cidade.

2. Infância no campo


2.1. Identifica os diferentes elementos que faziam parte do mundo real que o autor recorda.

2.2. Explica como é que a fantasia enriquecia esse mundo real.

3. Infância na cidade


3.1. O real e a fantasia continuavam a entrecruzar-se nos anos de infância vivida em Castelo Branco? Justifica a tua resposta.
3.2. A mudança ensombrou a felicidade dos anos de infância? Justifica a tua resposta.

4. Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas da nossa literatura. Regista neste texto de memórias duas expressões ( ou frases) que revelem a sua faceta poética.



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