Lê atentamente o seguinte texto:
Fantasias do Impossível – ARROJOS(1)
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extático(2) e suspenso,
Tomar-lhe as mãos mignonnes(3) e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
Se aquela que amo mais que a luz do dia
Me aniquilasse os males taciturnos(4),
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas com as minhas,
Eu desfaria o sol desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
e a Laura(5) dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba(6) e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos(7) paraísos
E a lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras(8) estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho(9),
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho(10).
Glossário:
(1) - atrevimentos; (2) - em êxtase, maravilhado; (3) - (palavra francesa) delicadas, graciosas, pequenas; (4) - calados, tristes; (5) - a mulher celebrada pelo poeta italiano Petrarca, apresentada como a amada inacessível; (6) - altiva, arrogante; (7) - da cor das rosas, rosados; (8) - instrumentos musicais de cordas; (9) - animal das regiões polares, de pêlo macio e, no Inverno, muito branco; (10) - café lisboeta..
Responde às seguintes questões:
1. «Arrojos» foi publicado em conjunto com dois outros poemas de Cesário sob o antetítulo comum "Fantasias do Impossível". Explicite as relações de sentido que este título estabelece com o texto.
2. Identifique quatro traços que caracterizam a figura feminina, documentando-os com elementos do texto.
3. Indique um dos efeitos de sentido da hipérbole presente nos versos: "Eu com um sopro enorme, um sopro imenso / Apagaria o lume das estrelas" (segunda estrofe).
4. Refira a importância dos dois últimos versos para a interpretação do poema.
5. Analise a relação do "eu" com a "amada", tal como é expressa no discurso poético.
Proposta de correcção
1. O poema apresenta este antetítulo uma vez que o poeta tem a perfeita noção de que toda a idealização nele expressa é impossível de alcançar. Este sabe que o seu amor nunca será correspondido e que os seus atrevimentos não são mais do que suposições que este faz enquanto – provavelmente –, sentado no Martinho, vê a sua amada a passar à sua frente. Daí a repetição anafórica do "se", que expressa uma condição desejada, mas, neste caso, impossível.
2. A mulher desejada pelo "eu" lírico é uma típica mulher burguesa, cujasmãos mignonnes revelam a graciosidade de quem encanta, mas certamente de quem não trabalha. Por isso, esta mulher tem atitudes próprias da sua classe social, pois é soberba e (...)fria, é altiva, incapaz de ouvir os lamentos das cítaras estranhas, o que perfaz um temperamento obtuso perante os que a amam, pois os seus olhos indiferentes ferem como espadas.
3. A resposta a esta pergunta é pessoal e apenas está a ser avaliada a capacidade de interpretar e dar um sentido lógico e objectivo à hipérbole, pelo que se considera certa a resposta que assim o fizer.
4. Os dois últimos versos do poema espelham a realidade do sujeito poético. É o local onde se senta e sonha com a sua amada, provavelmente motivado pela sua passagem. Deste modo, revela a sua atitude passiva e resignada, de quem sabe que é incapaz de mudar a realidade e se senta em atitude de derrota. Mostra ainda a sua submissão, pois, apesar de consciente da impossibilidade correspondência amorosa, o "eu" lírico deixa-se ficar a admirar a sua amada, numa atitude de veneração e prostração, o que revela o fascínio tamanho em que se deixa envolver.
5. Denota-se, em todo o poema, uma submissão total do sujeito poético aos encantos femininos desta mulher. O poeta adora-a, venera-a e sublima-a. No entanto, confessa-se também magoado com a atitude dela, pois não lhe vislumbra qualquer sinal de correspondência amorosa. Muito pelo contrário, vê nela uma indiferença e ausência aos seus apelos, factos que o magoam e o tornam consciente da incapacidade de concretizar o seu amor. Por isso, ele limita-se a sonhar com esta sua deusa, pois sabe que nada mais poderá fazer.
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